terça-feira, 17 de agosto de 2010

Pequeno tratado da polidez

A psicóloga Paula Gomide tem recebido com rabo de olho as notícias sobre a “lei da palmada” – nome popular dado ao projeto do presidente Lula que pretende proibir, com os rigores da Justiça, os tapinhas dados pelos pais para educar os filhos. A desconfiança da estudiosa é natural: o mundo por onde transita há mais de duas décadas é o da violência extrema, no qual os tapas não só doem como transformam crianças e adolescentes em infratores, criminosos e até psicopatas.

Pesquisadora gabaritada e seguidora assumidíssima da controversa corrente behaviorista – nome próprio da Psicologia Com­portamental –, Paula não se lembra de ter visto um estudo sério no Brasil sobre os tais efeitos nefastos da palmada doméstica. Daí se resignar e preferir não se alistar junto à maioria dos seus colegas de ofício, favoráveis ao remendo na legislação e ao enquadramento dos pais que usem outro método para educar que não a palavra.

“O governo olhou uma parte da questão. Deveria punir também o xingamento, tão prejudicial quanto. Mas o debate criado por Lula pelo menos vem a calhar: mostrou que temos muito ainda a conversar sobre o assunto, já que sabemos pouco a respeito”, pondera, com conhecimento de causa.

No início da década de 90, a psicóloga deixou pasma a banca da Universidade de São Paulo (USP) ao apresentar um estudo então inédito em que relacionou violência familiar e atitudes antissociais de adolescentes em conflito com a lei. Podia ser um bom trabalho, regado a rapapés, recomendado para publicação e relegado ao esquecimento em alguma estante ou à devoção de algum discípulo. Mas não foi o caso.

A londrinense radicada em Curitiba ofereceu a seus avaliadores não só tabelas e revisão bibliográfica – carregou para os corredores da mais importante universidade brasileira sua experiência na Colônia Queiroz Filho, em Piraquara, hoje Educandário São Francisco. Era sem dúvida uma pioneira.

Ainda que às vésperas da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, 1991, àquela altura não havia teses de peso sobre as atitudes e origens dos jo­­vens internados nas antigas Febens e similares. Muito menos levantamentos capazes de detalhar o que os teria levado ao pior dos mundos, ou um teste seguro para identificar famílias que funcionam como fábricas de contraventores. Pois Paula veio com os braços cheios. Era como se tivesse se infiltrado na cozinha, nos quartos e na intimidade da moçada colocada atrás das grades da colônia.

A resposta para as atrocidades que muitos garotos cometeram estava num repertório macabro sofrido na infância, formado por surras de machucar, abuso psicológico sem fronteiras e violência sexual na maioria das vezes. “Desafio. Vá ao sistema prisional e às unidades de ressocialização de adolescentes: 95% dos que estão lá passaram por essas situações na infância”, afirma a mu­­lher suave, mas capaz de colocar um auditório em polvorosa com suas provocações.

Em conversa com a Gazeta do Povo, Paula Gomide – professora aposentada da Universidade Federal do Paraná (UFPR), docente das universidades Evangélica e Tuiuti e presidente da Sociedade Brasi­leira de Psicologia – falou das palmadas que mais doem e soltou farpas contra o sistema de amparo a adolescentes infratores e, via de regra, deu um “sacode barata voa” no lugar-comum. A quem interessar possa, a mulher que desafiou sumidades como o jurista Dalmo Dallari – pasmo na fatídica banca da USP ao saber das mudanças de atitudes nos jovens com quem ela trabalhava em Piraquara – não para de surpreender.

A propósito, ela acaba de dar alta a um jovem parricida com quem travou contato no Projeto Fênix – unidade da Secretaria da Criança e da Juventude –, onde atuou por dois anos, sem, claro, gozar do conforto da unanimidade. Como quem dá notícias de um filho, conta que o rapaz vai bem, obrigado: “Passou em quatro vestibulares, mudou de cidade e começou nova vida.” Também não precisa mais de guarda-costas. Um ex-interno que a ameaçava de morte acabou assassinado por traficantes. “Avisei que ele não deveria ser solto.”

Está tudo bem: nos últimos anos, embalada pelas teorias Comte-Sponville e por Confúcio, a psicóloga que não deixa ninguém indiferente deu uma guinada em seu repertório e anuncia a prática da virtude como um remédio para a chaga da violência juvenil. “E pensar que a resposta para os conflitos poderia ser tão simples. Uma política pública obrigando todo mundo a ser polido? Ah, eu adoraria.”, diverte-se.

Confira trechos da conversa com a Gazeta do Povo:

A senhora é a favor da “lei da palmada”?

(risos) Complicado. Estudo há muitos anos o comportamento antissocial e os efeitos do abuso físico no desenvolvimento da criança. O abuso inclui bater, espancar, utilizar objetos para machucar, enforcar, queimar... Todas essas ações deixam de ser educativas para se tornarem agressivas. São punições violentas, não ensinam nada. A literatura universal determina que essas práticas são altamente prejudiciais. A criança fica com raiva, com medo, não relaciona o ato que fez com o certo e o errado....

Da palmada para a surra seria um passo...

A palmada é um tapinha na mão, no bumbum. Essa é a definição. Mas há pesquisas mostrando que a palmada tem um efeito nocivo no desenvolvimento das crianças? Não. A criança põe o dedo na tomada e a mãe dá um tapinha na mão. Ela só fez isso: não xingou, não ficou roxa de raiva, não sacudiu a criança. Tecnicamente não causou mal ao filho. O que os pesquisadores dizem é que quem começa com a palmadinha acaba aumentando a dose. De uma palmada passa para uma surra de chinelo e de cinta.

Daí o motivo para a proibição...

O que posso dizer como pesquisadora e educadora é que existem muitos outros recursos educativos que não bater e que devem ser usados. Os pais que fazem uso disso, alegando que foram espancados ou que, mesmo criados no fer­­ro e no fogo, são boas pessoas, estão errados. O que provavelmente fez com que os surrados se desenvolvessem foi algum exemplo positivo. Não sou a favor da palmada, que fique claro. Pode­mos dizer que a intenção da “lei da palmada” é correta, mas a palmada em si não traz consequências negativas em pessoas que só exclusivamente sofreram essa modalidade de coação.

A lei, se aprovada, lhe parece uma presença ostensiva do Estado num campo que não lhe pertence?

Acho que é a intenção de dizer eduque de maneira apropriada, com carinho e não com contenção física. É correto. Mas me parece difícil seguir essa lei. Uma orientação a esse respeito é suficiente quando fazemos uma capacitação para pais. A palmada tende a terminar com a birra no supermercado ou coisa assim. Será que deveríamos ter uma sanção tão forte? Se os pais extrapolam, batem e machucam, deixando vergão, tirando alimentação, penso que é hora de a sociedade discutir os castigos físicos. O Código Penal já pune quem passa do limite. Um pai agressor pode perder o poder familiar.

Desde o início de agosto, quando o assunto ganhou impulso na imprensa, a Gazeta do Povo recebeu 43 cartas de leitores sobre a palmada. Por que esse tema tem monopolizado tanto as pessoas?

Tem a ver com nossa cultura. Li um artigo sobre a punição física dos filhos entre os orientais e lá os pais têm hábitos muito mais severos: eles batem no rosto das crianças. E, para nossa surpresa, essa prática não traz consequências negativas, ao contrário do que ocorre nos EUA, por exemplo. Se um pai americano der no rosto de um filho, os efeitos negativos serão enormes, assim como a sanção social sobre ele. Na vida brasileira, a palmada leve nunca foi considerada inadequada, nem prejudicial, daí a estranheza. Talvez eu seja a única pessoa que estuda esse tema a dizer isso. Todos os meus colegas são a favor da lei. De minha parte, me preo­­cupa muito mais a negligência: ela sim é prejudicial. A “lei da palmada” é uma ideologia. Supõe que é um primeiro passo para ou­­tras agressões. Eu diria que a palmada e os gritos horríveis estão no mesmo nível. Por que não se diz que está proibido xingar a criança de burro e desgraçado? Acho que pegaram um pedacinho da questão.

O que acontece a uma criança e a um adolescente exposto aos maus-tratos?

Crianças espancadas tendem a ser antissociais e até a se tornar infratoras. A maioria dos meninos e meninas que desembarca nas unidades de ressocialização foi espancada. Tem pai que bate com frigideira na cabeça do filho, um absurdo.

Uma lei pode mudar uma cultura estabelecida sobre a criança? Diz-se que no Brasil elas são tratadas como propriedade pelos pais...

Nos últimos cinco anos tenho estudado comportamento moral. E digo: ele é o grande inibidor do comportamento antissocial. As pessoas que têm virtudes – justiça, generosidade, polidez, solidariedade –, que não roubam, não maltratam, não passam por cima, são menos propensas aos distúrbios emocionais. Mas não tem como fazer uma lei obrigando os pais a ensinarem valores. Minha pesquisa revela que a psicologia tem obrigação de colocar essas conclusões em comum, capacitando os pais para ensinarem o respeito pelo outro.

Em miúdos, uma política de valores pode mudar uma cultura sobre a educação?

Quando a gente estuda por que um indivíduo se torna alguém como o goleiro Bruno, depara-se com essa questão. Vamos à penitenciária e nos perguntamos de que famílias essas pessoas vieram e descobrimos que todos têm muito em comum: quase todos foram espancados, negligenciados, abusados psicologicamente, quando não sexualmente. Esses fatores são comuns aos criminosos de maior periculosidade. O pai e a mãe têm uma criança que deveriam amar e educar, mas no lugar espancam, xingam e abandonam. É o que basta para gerar o infrator do futuro. O Bruno teve essa história.

Como tornar um debate público a educação moral e os saberes da psicologia sobre o assunto?

O comportamento moral não é inato, mas aprendido. Quem ensina são os pais e professores, mas se aprende muito pelo modelo. Começa por dizer dizer “bom dia” e “obrigado”. Todos se sentem mui­­to bem se são respeitados. O contrário disso se chama agressão: vai do pouco caso a abrir uma geladeira sem pedir licença. Os pais de hoje não ensinam a polidez por considerá-la uma hipocrisia.

A alteridade tem o poder de amenizar estragos psicológicos sofridos na infância?

Fiz um estudo: há três anos aplico um programa de educação moral com adolescentes infratores e crianças de ONG. Elas ficam menos agressivas quando a relação com o outro começa a melhorar. O professor entra na dança: ele tem de aprender a pedir desculpa quando erra. A relação começa a ficar mais fácil. Aplicamos testes antes e depois, tudo se confirma.

A senhora tem uma longa carreira como pesquisadora. Não é curioso, a essa altura, deparar-se com o poder redentor de um elemento tão primário como a polidez?

Estou encantada. Despertei para essa possibilidade ao ler um estudo desenvolvido nos Estados Unidos com 1,2 mil famílias. Nas que havia um comportamento moral elevado não se verificavam usuários de drogas, por exemplo. Esse negócio é sério. Já me deparei com uma escola em que nenhum aluno é polido. Nem a professora. É muito fácil aparecer um agressivo num ambiente assim.

O estudo do comportamento moral é uma tendência na psicologia?

Infelizmente, não. Mas pode se tornar. Os temas são fascinantes. Ando interessada, por exemplo, no perdão terapêutico. Não se trata de um perdão no nível de Gandhi, Nelson Mandela, Madre Teresa... Não significa sair de mão dada com o inimigo. A empatia é um dos propulsores do bom relacionamento. Não adianta trabalhar para inibir o comportamento antissocial, mas criar mecanismos gerenciados pela própria pessoa e que lhe sirvam de inibidores da agressividade para o resto da vida.

É possível uma política da polidez?

Estive recentemente na Espanha, onde a polidez é vista como subserviência. Discordo: polidez é altivez. Alguém pode ser um canalha polido, claro, mas esse valor é uma porta para atitudes mais positivas. A polidez não é em si a virtude, mas o primeiro passo. Comte-Sponville, no livro Pequenos tratado de grandes virtudes, ensina que o comportamento moral é um co­­nhecimento fácil e acessível, pode ser propagado. As relações humanas ficam muito maiores com ele. É o que estamos procurando.

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